Resenha > O Homem Que Matou o Facínora

O verdadeiro facínora. Um dos maiores vilões da história do cinema: Liberty Valance. Lee Marvin está fantástico na sua interpretação, chega dar ódio. A contradição do nome do vilão só pode ser uma brincadeira, porque LV é mais tirano do que propriamente sabedor do significado de liberdade. É ele o facínora no título brasileiro (no original The Man Who Shot Liberty Valance). É ele quem deixa o povo de Shimbone indignado com sua vida criminosa, mas Liberty não é o mais durão daquelas paragens, como diz Tom Doniphon (John Wayne): -- Liberty Valance é o homem mais durão da região, DEPOIS DE MIM...

O Velho Oeste americano com suas cidades em formação e suas leis próprias, precisam de pessoas que lutem pelas boas causas dos cidadãos ansiosos pelo progresso. Shimbone é uma destas cidades, congregando fazendeiros, imigrantes, garimpeiros e tem até a imprensa. Com seu potencial de crescimento, atraem muitas pessoas idealistas. Ransom Stoddard, um jovem advogado, acredita nesse potencial e se desloca do leste para concretizar seus sonhos no oeste selvagem. O que ele talvez não atinasse é que o oeste é selvagem mesmo. Quase chegando à cidade, ele conhece a força do chicote de punho de prata, companheiro inseparável do facínora, o próprio... Liberty Valance.

Toda a história é narrada em flash back por Ramsom Stoddard (James Stewart), hoje um Senador da República, que comparece junto com sua esposa Hallie Stoddard (Vera Milles) ao enterro de Tom Doniphon em Shimbone. Os dois altamente tocados e reverentes imprimem-nos a percepção do que foi a vida de Doniphon para todos os que vivenciaram os fatos, como o editor do Shimbone Star Dutton Peabody (Edmond O'Brien) eternizou "Quando a lenda torna-se um fato publica-se a lenda". Essa máxima é a raiz do enredo desse admirável filme de John Ford.

É Tom quem traz Ramsom Stoddard para Shimbone. Tom Doniphon é o bom samaritano da parábola de Jesus, é ele quem encontra Ramson espancado por Liberty, caído na estrada junto aos seus livros de direito rasgados. Pra mim a cena é emblemática porque LV é o retrato da ojeriza aos livros: a lei rasgada pela lei do oeste. Ramson é levado para a casa dos imigrantes suecos Nora e Peter Ericson, donos do restaurante da cidade, lá está também o amor quase platônico de Doniphon, a bela Hallie, filha do casal. O destino une os que serão abençoados. Lá ele é cuidado com carinho sob a presença dos Ericsons e de Tom Doniphon. E sempre na presença do caricato Link Appleyard (Andy Devine) o xerife covardão e comilão que morre de medo de Liberty (Andy fez também o medroso condutor de carruagem em No Tempo das Diligências também de Ford).

Ransom vai ajudar a família lavando pratos e ensinando-os a ler e a escrever. Quando Hallie demonstra interesse em aprender a ler, é emocionante ver o entusiasmo de Ransom, o entusiasmo das pessoas boas e servidoras. Hallie conhece a Bíblia de ouvir os sermões, mas nada melhor do que ela mesma ler, afirma.

A escola é fundada nos fundos da redação do Shimbone Star. Lá como diz Ransom "a educação é a base da lei e da ordem". A freqüência é grande e heterogênica, crianças, jovens e velhos estão lá com toda a dignidade, até para conhecerem a Constituição e a Declaração de Independência, um momento patriótico bem fordiano.

A cena antológica (veja aqui) se passa no restaurante onde o povo da cidade come em pratos que parecem mais umas travessas de tão absurdamente grandes, e a comida não poderia deixar de ser proporcional. Os bifes e as batatas são gigantescos. Aliás, nunca vi ninguém comer um bife daquele tamanho. Impressionante! No dia D estão lá todos os comensais inclusive Doniphon e o editor Peabody. E quem chega mais tarde é o próprio Liberty Valence com sua maneira "delicada" expulsando as pessoas da mesa na qual quer jantar. Ransom é instado a levar o prato de Doniphon, quando Liberty e Ramson se encontram a surpresa é mútua. Liberty faz Ransom tropeçar e derrubar o prato de Doniphon. Os dois durões quase se enfrentam não fosse a providencial intervenção de Ransom. Liberty sai, mas insatisfeito. O mal quando é frustrado pelo bem pode duplicar a carga de maldade mais tarde. Ransom não está preparado para o oeste selvagem, sua arma é sua vocação, no entanto ele tem fibra: -- Ninguém se mete nos meus assuntos! Diz ele para Doniphon.

Doniphon é bronco no amor, nunca se declara para Hallie, toda a espera culminou com a chegada trágica de Ransom à cidade. Seu presente para Hallie é uma flor de cactos. Outra imagem emblemática: vejo Doniphon como um cowboy bruto, mas uma alma com um coração bom, representado por essa flor que desabrocha no meio dos espinhos dos cactos. Ransom fica surpreso por Hallie achar a flor linda e pergunta se ela nunca viu uma rosa. Os pais querem que Hallie se aproxime de Ransom e ela aos poucos vai se apaixonando. Doniphon presencia uma cena que vai fazê-lo queimar a casa que vinha construindo para ele e Hallie. Mas Doniphon é sábio. Ele sabe, talvez inspirado pela Graça de Deus, o que a cidade e Hallie precisam, e sabe de seu destino como (o simbólico) cowboy solitário.

O duelo em que Ransom é obrigado a enfrentar Liberty Valance é estranhamente ganho por Ransom... terá sido a providência? De alguma maneira... Doniphon me lembra muito a figura bíblica de Jonas, que mesmo fugindo de sua responsabilidade, ainda assim Deus o resgata para fazer o que tem que ser feito: proporcionar um amor mais justo para Hallie e o progresso de Shimbone, por intermédio de um representante político digno e preparado que é Ransom Stoddard. Tom Doniphon salva Ransom matando Liberty Valance com um tiro de rifle exatamente no momento em que ele ia matar Ransom. Este é o fato: Tom matou Liberty Valance. Os heróis não precisam de publicidade, já basta serem usados por Deus. Mas a lenda deve ser impressa: Ransom Stoddard, o homem que matou o facínora.

O Homem que Matou o Facínora (EUA, 1962) de John Ford

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