Resenha > Meu número 3 de todos os tempos

CONSCIÊNCIAS MORTAS de William A. Wellman

Um filme extraordinário. É meu terceiro melhor filme porque como os dois anteriores -- Primeiro, RASTROS DE ÓDIO de John Ford (por enquanto sem resenha) e segundo, 2001 - UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO de Stanley Kubrick (leia a resenha) -- têm aquela capacidade, apesar do olhar frequente, de multiplicar surpreendentemente tantos aspectos e detalhes significativos na interpretação dos atores, nas metáforas, nos simbolismos, na poesia, na emoção, no sublime das cenas e argumentos, no olhar genial de seus diretores e até mesmo na comparação com a Palavra de Deus. Como disse alguém: Filmes à frente do seu tempo.

Pois bem...

Em 1885, numa cidadezinha de Nevada (estado americano na região das Montanhas Rochosas), chamada Bridger's Wells, chegam dois forasteiros Gil Carter (Henry Fonda) e Art Croft (Harry Morgan). A cidade parece estar completamente vazia, e Carter a compara com um cemitério. Um grupo de pessoas está concentrado no saloon de Darby (Victor Kilian) e há um clima tenso por causa de vários casos de roubo de gado na região. A dupla de forasteiros é considerada suspeita, apesar de serem conhecidos de Darby. Carter frustrado depois de um amor perdido fica muito impressionado com a pintura que Darby tem atrás do balcão, uma La Maja Desnuda com sua pele branca e um homem atrás do divã, que segundo Carter, nunca chegará até a mulher, numa interpretação abstrata da "imobilidade" do personagem pictórico, mas que também é uma boa metáfora para entendermos o que vai acontecer no filme. Diz Carter, ao olhar para o homem no quadro:

-- Sinto pena dele. Sempre perto, mas nunca conseguirá fazer nada.

Enquanto isso chega a notícia de que um fazendeiro chamado Kinkaid foi encontrado morto. Uma informação equivocada que vai gerar um grande problema. Um grupo de cidadãos se reúne para partir à procura dos assassinos que, apesar das pouquíssimas evidências, a maioria pensa ser os mesmos que estão roubando gado. O xerife (Willard Robertson) da cidade encontra-se fora em perseguição de suspeitos dos roubos. Muitos são instados a participar pela boca de alguns insufladores retóricos. Perfeitos líderes do mal. A turba ainda está na dúvida. Mas sempre tem alguém, um demoníaco líder, a pessoa que vai colocar toda a resistência por água abaixo. Esta pessoa é o Major Tetley.

O grupo de cerca de 30 homens parte para o vale chamado Ox-Bow (o nome original do filme é The Ox-Bow Incident), é um lugar nas Rochosas, montanhoso e bastante frio, onde três suspeitos foram vistos. O cenário é sombrio. Lá encontram, dormindo numa clareira, três homens: Donald Martin (Dana Andrews), o mexicano Juan Martínez (Anthony Quinn - já no início de uma bela carreira premiada) e o velho Halva Harvey (Francis Ford - irmão do diretor John Ford). Donald é um fazendeiro iniciante que compra o gado do "morto" Kinkaid, mas não tem nenhum comprovante para isso, já que o vendedor ia enviar depois. Os outros dois trabalham para ele. Surpreendidos pela turba, e acusados de roubo e assassinato, numa avalanche de mal entendidos, a situação dos três começa a se complicar. Donald começa a perceber a gravidade da situação, engole em seco e fica muito preocupado com o que acontecerá, pois tem mulher e dois filhos pequenos. Não adianta pedir provas, a turba já meteu na cabeça que eles são culpados pelo roubo do gado e pelo assassinato de Kinkaid. Seus acusadores são homens rudes e desmiolados, fáceis de serem insuflados.

Os personagens são de uma riqueza impressionante, por isso vou dar um destaque para alguns abaixo, na ordem dos bons para os maus:

- Penso que o mais bondoso sem dúvida alguma é o Sr. Arthur Davies (Harry Davenport - o juiz bem humorado de DO MUNDO NADA SE LEVA de Frank Capra), consciencioso, o velho dono do armazém local faz de tudo para controlar a turba. Manda chamar o xerife e o juiz, dá conselhos e mostra no que pode se transformar a insana ação antes da reflexão. Ele corre para tentar deter os cidadãos. Tenta convencer amorosamente o major que não gosta da mão de Davies em seu braço. Ele quer ter certeza de que trarão os suspeitos para um julgamento justo, na falta dessa certeza, ele pega seu cavalo e vai junto. É um personagem maravilhoso. É ele quem proporciona um pingo de esperança em Donald quando o Major pede para que ele se posicione diante da acusação. Ele é um dos sete que serão contra o enforcamento. Dá a idéia para Donald Martin escrever uma carta para os filhos e esposa. Até o último momento ele tenta de tudo para reverter a situação, mas é impotente. O mal já está instaurado. Mas a sua coragem e hombridade são mais importantes que sua impotência. Ele está bem de acordo com o versículo do livro de Ezequiel que está lá no fim da resenha.

- O segundo é o maravilhoso Sparks (Leigh Whipper). Ele é negro, por isso um pouco à margem da sociedade. Estamos no século XIX, o papel do negro ainda é complicado nas cidades do oeste, mas ainda assim aceito. Sparks é um homem de Deus. Ele sabe muito bem o que está acontecendo. Teve seu irmão linchado quando era criança, não sabe se o irmão tinha alguma culpa, nunca pôde saber. Convocado pelo malvado e irônico Monty Smith (Paul Hurst) com o argumento de que precisam de um "pastor", pois haverá "reza". No que Sparks diz: -- Talvez alguém que pensa como eu deva ir. Ele vai num cavalo emprestado pelo Sr. Davies. Sparks é forte, mesmo num local alto na montanha, muito frio, o único a oferecer um cobertor para ele é Gil Carter (Henry Fonda). É ele quem vai orar junto com o velho Halva, que chora para não morrer. É ele quem vai louvar com canções a Deus, enquanto Smith e a Sra. Jenny Grier (Jane Darwell - a mãe do personagem de Henry Fonda no filme AS VINHAS DA IRA de John Ford, Oscar de atriz coadjuvante), a única mulher no grupo, o profanam com risadas. Jenny é uma espécie de mulher-macho (sim sinhô!) que não é sábia e adora colocar lenha na fogueira da maldade. Sparks é quem vai ser o primeiro a se separar da turba para compor o grupo dos sete contra o infame enforcamento. No entanto, não tem um poder de reverter tudo o que está acontecendo, ele é o que menos pode se manifestar por ser negro. No take de sua primeira cena, há uma música coral angelical tocando ao fundo quando a câmera foca em cima dele. Podemos dizer que Sparks é o representante de Deus naquele tribunal do mal ao relento.

- Seguindo vem Gil Carter (Henry Fonda). É rude, mas sabe ter empatia com quem merece, sabe definir as coisas injustas da justas. Ele é valente e briga com alguns dos crápulas do mal que estão na turba. Atento, ele corrige o Major quando este fala para o condenado Donald que foram mandados pelo xerife, na verdade foi o delegado auxiliar Butch (açougueiro) Mapes, um grosseirão que acha ser o modelo da justiça com a estrela no peito, quem decidiu e conjurou pelo xerife. Carter é reflexivo, melancólico e irritadiço, parece estar à procura de uma transcendência para a sua vida onde nada dá certo. Ele será o alento e o portador da esperança para a família de Donald, ao ficar com a carta escrita por ele e dada pelo Sr. Davies. Carter também foi para o grupo dos sete, seguido pelo seu amigo.

- Juiz Daniel Tyler (Matt Briggs), posudo como alguns retóricos da justiça, tira o corpo fora dizendo que não é sua função ser uma autoridade policial, é uma figura morta em termos de exemplo e respeito. Se tivesse pulso poderia muito bem fazer a situação se reverter, pois é a peça chave dentro de um caso que clama por justiça. Carter conhece-o muito bem ao dizer que a governanta de sua casa fala por ele. Sempre se esquivando.

- À partir daqui vamos conhecendo os maus. Temos o amigo de Kinkaid, Jeff Farnley (Marc Lawrence) que não cruza bem com Carter e leva uma surra dele no início, ao insinuar sua participação no roubo de gado. Racista e xenófobo foi ele quem falou no enforcamento: -- O mexicano (Quinn) é meu! Com ele vem Monty Smith (Paul Hurst), segundo Carter, um adorador de enforcamentos. Ele é perigoso pois é falso e mentiroso. Ao voltar da tragédia ele diz que o próximo a ser linchado deveria ser o Major Tetley. Não deixa de ter lá suas razões, mas ele deveria estar junto com o Major. E ainda a personificação da justiça, Butch (açougueiro) Mapes, considerado pelo xerife (Willard Robertson) como um dos responsáveis pela situação. Sua orgulhosa estrelinha é arrancada violentamente pelo xerife.

- Finalizando com a própria personificação do mal, o Major Tetley. Sulista e confederado veterano de guerra. Carter como bom observador faz um comentário de que o Major Tetley, apesar de toda sua pompa com vestimenta confederada e tudo mais, pode ter fugido e vindo morar depois da guerra em Nevada (estado que apoiava o lado da União na guerra civil), escondendo algo de sua vida pregressa. Sua casa no final da rua é imponente e contrastante, e bem típica da arquitetura neoclássica sulista, ou seja, nada a ver com a pequena cidade de Bridger's Wells. O major será uma das figuras centrais na trama, um líder do mal, controlador e autoritário. Quem pode dizer é seu filho, um amoroso e gentil jovem, arrastado para a situação contra sua vontade e forçado pelo pai a ser um homem corajoso, o que ele não é. O pai vive em sua realidade neurótica, pois na verdade ele próprio é um covarde, e o filho sabe disso. É um poderoso insuflador, um líder que se impõe pelos gestos e postura reservada. Um túmulo caiado diga-se de passagem. A todos engana, menos Gil Carter. Ele sabe de todo o tempo que tem até o xerife chegar. É um homem mal, calculista, dá rapidez aos pés para fazer o mal.

O filme é trágico. Donald Martin ainda vislumbra os raios de sol nascendo na manhã fria. A agonia durou toda a madrugada. Três inocentes são enforcados quase ao nascer do sol na fria montanha. Quando tudo termina e a turba se vai, chega o xerife dizendo que homem supostamente morto, Kinkaid, está vivo e que prendeu os homens que o feriram e roubaram seu gado. Surpresa geral! A câmera passa pelos semblantes de cada um dos homens. Semblantes massacrados pela verdade e pela injustiça. O xerife vira-se para o Sr. Davies: -- Sr. Davies conheço-o muito bem para saber que não está envolvido nisto. Dependo do senhor para saber quem está envolvido. Que Deus tenha piedade de vocês porque eu não terei. E Davies responde:

-- Todos menos sete...

Sete, simbolicamente falando, é um número de perfeição. Segundo o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier. Sete são os graus de perfeição. É um número muito presente na Bíblia, o número de conclusão cíclica e da sua renovação. "Tendo criado o mundo em seis dias, no sétimo Deus descansou e fez dele um dia santo".

Duas passagens também muito simbólicas estão no início e no fim do filme. Quando Carter e seu amigo Art chegam a Bridger's Wells, um cachorro atravessa na frente deles. E no fim, com quase o mesmo posicionamento de câmera, o diretor William Wellman, inverte a cena com os forasteiros indo embora e o cachorro passando por trás deles para o lado em que saiu no início. O mesmo Dicionário de Símbolos nos fala que o cão é um símbolo de proteção, guia do homem na noite da morte após ter sido seu companheiro no dia da vida.

No Saloon de Darby a desolação é geral. Carter com a carta na mão lê para todos o que Donald Martin escreveu, um verdadeiro pensamento filosófico. Transcrevo:

Minha esposa querida:
O Sr. Davies vai te contar o que aconteceu aqui. Ele é um bom homem e fez tudo o que pôde por mim. Havia outros homens bons, só que não perceberam o que estavam fazendo. É por eles que sinto pena porque quando isso acabar eles se lembrarão pelo resto da vida.
Um homem não pode pegar a justiça com as suas mãos e enforcar pessoas sem ferir todos no mundo. Porque eles não estarão violando só uma lei, mas todas as leis. A lei é muito mais do que palavras em um livro ou juízes, advogados e xerifes que você contrata para cuidar dela. É tudo que aprendemos sobre justiça, sobre certo e errado. É a verdadeira consciência do que é humanidade. Não há civilização se não houver consciência porque as pessoas falam com Deus por sua consciência. E o que seria a consciência, senão um conjunto de consciências de cada homem que viveu?
Acho que é tudo que tenho para dizer, além é claro de mandar beijos para as crianças e pedir que Deus as abençoe.
Seu marido,
Donald

Quando o Sr. Davies leu essa carta, ele teve certeza da inocência de Donald Martin.

Carter como portador da carta se incumbiu de levá-la para a esposa de Donald.
Art pergunta a Carter: -- Para onde vamos?
Carter responde: -- Ele disse que queria que sua mulher recebesse a carta, não é? Disse que não há ninguém para cuidar dos seus filhos, não?
E lá foi Carter. Talvez em busca de sua transcendência.

No livro de Ezequiel (Ez 33.7-9) há a passagem que diz:
"Ora, a ti, filho do homem, te pus como sentinela para a casa de Israel. Assim, quando ouvires uma palavra da minha boca, hás de avisá-los de minha parte. Quando eu disser ao ímpio: 'Ímpio certamente hás de morrer' e tu não o desviares do seu caminho ímpio, o ímpio morrerá por causa da sua iniquidade, mas o seu sangue o requererei de ti. Por outra parte, se procurares desviar o ímpio do seu caminho, para que se converta, e ele não se converter do seu caminho, ele morrerá por sua iniquidade, mas tu terás salvo tua vida".

Um filme maravilhoso! Baseado no livro de Walter Van Tilburg Clark.

Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident), de William A. Wellman (EUA, 1943)

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